Tem Um Fantasma no Meu Banheiro - Ane Braga

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Esculturas Penadas - Natan de Alencar

Quem passa, à meia-noite, pela Praça Afonso Schmidt, se está sintonizado com as forças paralelas da vida, ou mesmo se apertar um pouco os olhos, ou espremer um pouco a alma, notará a tristeza que assalta certa personalidade, considerada em vida um dos grandes escritores de São Paulo, quiçá da Nação Brasileira.
Ali o vi quando voltava da casa de uma cunhada. Me aproximei de seu busto como quem não queria nada. Não fiz as perguntas de praxe por conhecer Afonso Schmidt de longa data, nos meus muitos momentos de solidão lilterária.
Fiz-lhe uma pergunta de supetão:
- Meu mano ( não estranhem essa intimidade, não há frescuras entre nós), o que lhe deixa triste como a voz de um sino?
- Ah, Nato (assim só me chamam os íntimos da família), olha essas pichações! Só de imaginar que em vez do meu busto poderia estar aqui o do Menino Felipe. Ainda bem que é o meu busto que aqui está..
- Mas, Afonso, são os vândalos. A culpa é da falta de educação. Os meninos que fazem isso tiveram pais ausentes e....
- Quisera crer que fosse só isso....
E ficou soluçando bastante. Parecia que seu soluço se estenderia por toda a madrugada. Cada lágrima sua era uma gota pesada de melancolia.
Meus olhos estavam pesados, em petição de miséria. Como o resto do corpo.
De súbito, ouvi um barulho de bigorna sendo arrastada. Um vulto. Gritei:
- Quem vem lá?
- Apenas um operário arrastando uma bigorna e trazendo uma placa de bronze no pescoço..
- Peraí. Tou te reconhecendo. Você não tava na Praça das Indústrias, na frente do Teatro Municipal?
- Uns vândalos roubaram meu corpo-escultura, mas, eu – a alma daquela obra - consegui escapar. Tenho medo de voltar pro mesmo lugar. Além do mais, nem sei o que fizeram de meu corpo-escultura. Aqui, vivo a arrastar esta bigorna toda madrugada. Porém, não faço mal a ninguém. E só os sensíveis como tu percebem.
- Por que aqui?
- Porque esta praça é simbólica pra nós, esculturas. Aqui fica o busto do valoroso Afonso Schmidt, que amou esta terra como poucos. Por milagre, ainda não foi roubado.
- Tá bom. Entendo. Pode continuar seu caminho. – E me sentei.
- Daqui há pouco. Por enquanto, quero me sentar um pouco. Posso me sentar a seu lado?
- Pode.
- Ontem, encontrei a alma do busto de Getúlio Vargas. Vive a rodear a praça que leva seu nome, deixando, volta-e-meia, a cabeça cair...
- Sei. Deve ser porque roubaram a cabeça de seu busto.
- Veja que situação triste. A violência contra nós, esculturas, não tem tamanho. É um descalabro.
- E onde andará a alma do busto do Santini, que ficava na entrada da cidade?
- Não sei.
- E a escultura que ficava sobre o obelisco da Praça Taquaritinga?
- Que inferno! Como eu vou saber?
- Calma, foi só uma pergunta...
A alma da escultura do operário se levantou e continuou a arrastar sua bigorna. Fazia um barulho horrendo.
Acabei adormecendo ali mesmo, quase ao lado do busto de Afonso Schmidt, que se aquietara.
Quando acordei, olhei no celular e já era meio dia.
O que iriam dizer no meu serviço? De novo, o aluado chegando atrasado. Nenhum deles iria querer saber das minhas insônias constantes.
A meu lado, percebi uma série de rostos. Uma mulher sem dentes. Um homem fedorento. Uma criança de peito. Eram, pelo que percebi, mendigos que ali encontraram espaço, por enquanto, até serem expulsos ou encontrarem abrigo em outra praça.
Quando olhei a criança, me veio à mente um fato que lera no depoimento de um vereador eleito. Um fato que ficará comigo durante muito tempo. Ele vira uma criança pegar uma chupeta que caíra numa vala e pôr à boca. O que posso fazer a respeito desse fato? O que podemos fazer?
Senti debaixo de mim uns jornais. Na certa, aquela mendiga de olhar mais gentil os colocara.
Peguei um dos jornais e li que a Prefeita esta fazendo um levantamento das depredações nas praças para um programa de recuperação. Que bom. Talvez essas almas de esculturas penadas tenham paz.

Esculturas Penadas

Um comentário:

  1. O brilhantismo de Natanael tanto no verso quanto na prosa é inquestionável,realmente neste conto ele retrata a depredação que as esculturas em nossa cidade que é Cubatão passam, coisa de vandalos e de gente despreparada para ser cidadão. Há também uma critica social em relação a pobreza neste conto, a imagem da criança que por falta de uma,apanha uma chupeta na vala é tocante por ser entristecedora. Parabéns Hadara por Publicar a Natanael, seu blog-literário só ficará mais rico com a literatura desse grande autor do litoral santista.

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